quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

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Sexo, crime e morte com as mulheres da máfia

Victor Lisboa
No mundo falocêntrico de mafiosos e gângsters americanos da primeira metade do século XX, as mulheres dividiam-se basicamente em duas espécies: as prostitutas ou amantes — que deviam dispor-se apenas a favores ou serviços sexuais — e as esposas, que deviam ficar em casa cuidando da próxima geração da famiglia.
Porém, nesse habitat patriarcal, algumas mulheres tentaram abrir caminho na direção de uma terceira possibilidade, distante desses dois estereótipos: são as mob molls.
O texto a seguir foi inspirado em uma rápida matéria fotográfica do NY Daily News, mas tivemos a pretensão de ir mais a fundo na pesquisa das histórias por trás das imagens.
É difícil traduzir a palavra moll, pois, em sua origem remota, significa “rameira” ou “prostituta”, e não é disso que se trata. As “molls” eram as companheiras dos gângsters e mafiosos que se envolviam em suas atividades criminosas, em maior ou menor grau de cumplicidade. Completando o termo, “mob” era um dos jeitos de chamar a máfia.
É impossível contar a história do crime organizado americano sem falar delas.


Mas não nos iludamos quanto à independência das mob molls. Elas ainda precisavam se submeter a seus homens. A mulher na foto acima, de 1931, é a atriz Alice Granville, esposa de Pete Donahue, um dos assassinos profissionais que prestava serviços ao famoso gângster Dutch Schultz (ele será figurinha constante nessa narrativa).
Na imagem, Alice Granville está no Rossevelt Hospital, e mostra dois buracos de bala em seu braço, feitos por seu marido durante uma festa em uma boate. Em seu depoimento, ela afirmou que foi a forma de seu marido provar que a amava.
Enfrentar essa lógica misógina e lidar com o submundo do crime exigia coragem e força das mob molls. Ilustrativa é a imagem a seguir. Observem o olhar da mob moll Smitty White, pois ele é eloquente.
Ela foi detida em 1942, após seu namorado Ralph Prisco ter sido alvo de disparos de policiais numa tentativa fracassada de assalto a mão armada.
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Quando essa foto foi feita, ela prestava depoimento sobre seu envolvimento no crime e Ralph já estava morto. Vê-se algum sinal de tristeza em seus olhos? Percebe-se algum indício de fraqueza na mulher?
Observe que a senhorita Smitty segura na mão esquerda a estátua de um Buda. Por algum motivo, é difícil crer que ela o faça por razões religiosas, pois parece dizer ao fotógrafo algo como “se você tirar essa foto, enfio esta estátua no seu rabo”.
Mas isso é especulação.
E quando falamos de mob molls não podemos nos esquecer de Virginia Hill. Na foto abaixo, ela está depondo em 1951, diante de uma comissão destinada a investigar o crime organizado.
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A trajetória de Virginia Hill no submundo do crime parece a de uma personagem criada Hollywood. Bom, na verdade, ela foi uma personagem pois, em 1991, o diretor Barry Levinson (o mesmo de Rain Man e Bom dia, Vietnã) lançou o filme Bugsy, contando a tórrida relação entre Virginia e o chefão Bugsy Siegel.
Virginia Hill nasceu tão pobre que dizia ter ganho seu primeiro par de sapatos apenas aos 17 anos. Ainda jovem, atraiu atenção de Joseph Epstein, um bookmaker e jogador profissional, graças ao qual ela teve acesso ao submundo de Chicago, tornando-se mensageira entre famílias mafiosas e grupos de gângsters, por conta de sua aparência insuspeita, que não atraia a atenção da polícia.
Não demorou para Virginia envolver-se com Joe Adonis, mafioso fundador da Cosa Nostra nos Estados Unidos. Devido a influência de seu amante, ela logo se tornou conhecida como a “rainha dos gângsters”. Virginia Hill chegou até mesmo a ter seus próprios esquemas dentro do crime organizado, explorando ela própria a prostituição masculina na então pouco recomendada Brodway Avenue.
Nos anos seguintes, Virginia tentou ocultar a origem de sua riqueza fingindo-se de rica herdeira do sul dos Estados Unidos, mas não conseguiu convencer a alta sociedade de Chicago com essa lorota.
Um curioso incidente ocorreu quando Virginia teve uma viagem de São Franscisco, Califórnia, para El Paso, no Texas, interrompida por investigadores da polícia e da promotoria que desejavam interrogá-la sobre suas atividades criminosas no aeroporto. Irritada com as perguntas do Promotor Distrital Lawrence Stone, ela deu um soco na cara do sujeito, o que lhe rendeu algumas horas detida na delegacia.
A imagem abaixo flagra o momento em que ela estava sendo conduzida por Lawrence para ser autuada por desacato. Mais tarde, ao chegar em El Paso, Virginia se irritou com o assédio dos jornalistas e acertou a cabeça em um deles com seu sapato.
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O grande amor de Virginia foi Bugsy Siegel, mafioso conhecido, entre outras coisas, por ter fundado a Murder, Incorporated (eles próprios criavam esses nomes ou contratavam publicitários?), organização que servia de braço armado para a máfia da costa leste dos Estados Unidos.
O êxito de Bugsy levou-o a cruzar o país e ter relações com grandes celebridades do cinema, como Clark Gable (de … E o Vento levou) e Carry Grant (Intriga Internacional), e poderosos produtores de Hollywood. Virginia, frustradas em suas tentativas de ser aceita pela alta sociedade de Chicago, acompanhou seu amante.
E foi na mansão de Virginia em Berverly Hills que Bugsy morreu, assassinado por um desconhecido no caso que permaneceu um mistério até hoje. Quatro dias depois seu assassinato, Virginia repentinamente partiu para Paris em um voo não programado. Retornou aos Estados Unidos apenas para abandonar o país em 1954, quando foi acusada pelo crime de sonegação tributária.
Virginia Hill morreu em sua residência, na Áustria, no ano de 1966, por suposta overdose de calmantes, em um caso considerado até hoje como de suicídio, embora os biógrafos de Bugsy levantem dúvidas sobre se sua morte não teria sido uma engenhosa queima de arquivo.
Mas nem todos os casais de criminosos daquela época tinham o mesmo glamour de Virginia e Bugsy. Nesta foto de 1944, uma xará da rainha dos gângsters, Virginia Ornmark, com 19 anos, e seu namoradinho Fred Schmidt, de 24, olham nada sorridentes para a câmera, após serem acusados pelo homicídio de um comerciante de lingerie.
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E também nem todas as mob molls eram amantes. Algumas eram noivas e esposas. Na imagem abaixo, Lottie Kreisberger oculta seu rosto durante o julgamento de seu noivo, Vicent Coll (ao seu lado, à direita), em 1930.
Ele estava sendo acusado de ter matado uma criança por acidente, durante uma emboscada armada para apagar o mafioso Joseph Rao.
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Lottie era uma estilista em Nova Iorque quando conheceu Vincent e se apaixonou pelos olhos azuis do simpático filho de irlandeses que cresceu como órfão no bairro do Bronx, em Nova Iorque. O problema é que seu namorado era conhecido no submundo como “Mad Dog“ (“cachorro louco”, em tradução livre), assassino profissional a serviço de Dutch Schultz, um gângster de sangue alemão e judeu, durante a época das vacas gordas propiciadas pela Lei Seca.
Eles casaram logo após Vicent ser absolvido do homicídio de um menino de 5 anos de idade. Porém, a alegria do casal durou pouco, pois o marido de Lottie havia queimado seu filme com o poderoso Dutch Schultz ao trocar de lado e aceitar um trabalho encomendado pelo chefe da Cosa Nostra, Salvatore Maranzano.
Schultz não só colocou sua cabeça a prêmio: dizem que ele foi até uma delegacia do Bronx e ofereceu uma casa no Condado de Westchester para o policial que conseguisse matar Vincent.
Em 1932, cinco homens invadiram o apartamento do casal e mataram três membros do grupo de Coll, que escapou ileso apenas para ser assassinado durante sua fuga. Ele estava em uma farmácia fazendo um telefonema para extorquir dinheiro de outro gangster, ameaçando sequestrar seu cunhado, quando dois homens entraram no estabelecimento e um deles tirou uma submetralhadora Thompson que mantinha oculta em seu sobretudo.
Logo depois desses fatos, Lottie foi detida pela polícia por porte ilegal de arma e condenada a seis meses de prisão. Mas quando recebeu a condicional, ela recusou-se a sair, alegando que preferia ficar na penitenciária feminina por temer que os assassinos de seu marido estivessem esperando a oportunidade de também lhe matar.
Aqui temos três fotos de Janice Drake que são o resumo da trajetória das mob molls. A primeira é de 1940.
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Antes de se envolver com o crime organizado, ela foi Miss Nova Jersey e casou-se com o comediante Alan Drake, que devia favores para a máfia. Acontece que Janice e o marido tinham um casamento estranho, “aberto” demais para os padrões da época.
Em pouco tempo, ela começou a ir a boates e festas frequentadas também por membros de organizações criminosas. Os dados são incertos, pois a polícia começou a montar o quadro após ela aparecer morta ao lado de Anthony Carfano, um caporegime (espécie de capitão) da Família Luciano.
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O que os investigadores descobriram após o crime é que Janice parecia não trazer sorte para seus amantes, pois por duas vezes ela jantou com criminosos na véspera de suas mortes. Janice foi a um restaurante com o mafioso Albert Anastasia na noite anterior àquela que ele foi brutalmente assassinado por dois homens em uma barbearia, enquanto cortava o cabelo. Curiosamente, também jantou com o chefão Nat Nelson um dia antes de ele morrer.
Na foto acima, ela foi flagrada em 1952, quando saia de uma delegacia após prestar depoimento sobre sua relação com Nat Nelson.
Se a morte estava aproximando-se de Janice Drake em círculos, não demoraria para fechar o cerco. Como dito, em 1959 o Cadillac de Anthony Carfano foi encontrado estacionado em um local ermo. O mafioso e Janice Drake estavam mortos, ela um tiro na cabeça. O caso permaneceu sem solução até que, anos mais tarde, Anthony ‘Tony’ Mirra confessou o assassinato, encomendado pelos capos da Família Bonanno.
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Mas deixemos de falar de morte e voltemos nossa atenção para as curvas Kiki Roberts, abaixo.
Kiki era uma dançarina famosa por suas pernas e pelo envolvimento com gângsters. Em 1920, ela era a principal atração de um show burlesco intitulado Crazy Kilt. Foi quando conheceu Jack Diamond, vulgo “Legs” (“pernas”), apelido que o sujeito ganhou após conseguir escapar da polícia durante uma tentativa de roubo de um caminhão de entregas.
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Quando conheceu Kiki, Jack Diamond estava no ápice de sua carreira no submundo novaiorquino, após construir uma sólida reputação como contrabandista, sequestrador, ladrão e traficante. Habilidoso atirador, Diamond tinha outro apelido “Clay Pigeon“, por ser alvo frequente de disparos, sem que jamais conseguissem acertá-lo.
Kiki também era uma estrela em ascensão, mas no show business. A atração foi mútua e automática, e a famosa dançarina não parecia se importar exibir à imprensa sensacionalista da época as fotos de Diamond que decoravam seu apartamento, embora ele fosse um criminoso procurado pela polícia e apesar de ele ter casado em 1920 com Alice Diamond. Um dos retratos, estrategicamente colocado no apoio de sua lareira, tinha a inscrição “Meu Herói”.
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Coincidência pura, no final daquela década Diamond adquiriu a propriedade de uma famosa casa noturna de Nova Iorque, a Hotsy Totsy Club. Àquela altura, ele já era um dos maiores controladores do mercado negro de álcool e narcóticos na cidade. O problema é que sua carreira meteórica colocou-o em rota de colisão com o chefão Dutch Schultz (sim, ele mesmo!), e esse último decidiu colocar a cabeça do rival a prêmio.
A guerra de chefões colocou Kiki no fogo cruzado. Ela estava jantanto com Diamond no Hotel Monticello, em outubro de 1930, quando dois homens de Schultz entraram atirando. Diamond foi ferido cinco vezes, mas sobreviveu. Kiki não foi atingida.
Em abril de 1931, Diamond foi atacado e novamente atingido por balas, mas também sobreviveu. Alguém por favor pode acertar esse cara de um jeito que ele não se levante de novo?, teria desabafado Schultz.
E o pedido de um chefão é uma ordem. Em dezembro daquele mesmo ano, ao sair do apartamento de Kiki Roberts de madrugada, Diamond foi atingido por cinco tiros nas escadarias do prédio, desferidos por três homens a serviço de Schultz. Quando a polícia chegou, encontrou Diamond morto.
O fim da vida de Diamond foi o fim da carreira de Kiki Roberts. Tendo utilizado sua associação com um poderoso gângster para promover-se, sua imagem estava tão vinculada a dele que não demorou para sua estrela perder todo o brilho para a imprensa. Kiki Robert foi gradualmente sumindo do show business.
Ela chegou a trocar de nome e, mais tarde, tentou retornar aos palcos, sem sucesso. A imagem abaixo é uma das últimas de Kiki, de 1935. Em algum momento após essa matéria, ela desapareceu completamente, e começaram a circular boatos de que Kiki teria se tornado uma sem-teto. Esses boatos inspiraram uma personagem de Ironweed, romance de William Kennedy que por sua vez serviu de base para o comovente filme de Héctor Babenco, na qual foi Kiki foi interpretada por Meryl Streep. A cena de suas últimas horas de vida é memorável.
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Para os fãs de seriados, literatura e filmes sobre gângsters e mafiosos americanos do século XX, fica a impressão de que a figura das mob molls ainda não foi devidamente explorada. A maior parte dos filmes e seriados que tentam desenhar o submundo do crime nos Estados Unidos retratam as mulheres ou como amantes e esposas submissas (ainda que às vezes raivosas e ensaiando frustrados passos de autonomia) ou como vítimas.
Na verdade, talvez ainda esteja para nascer uma obra literária ou cinematográfica que conte a história da máfia sob a perspectiva das mulheres, como As Brumas de Avalon é para a lenda do Rei Artur e A Casa das Sete Mulheres é para a Revolução Farroupilha.
Ou existe e algum leitor pode nos recomendar?


Victor Lisboa
"Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e no blog Minha Distopia


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